Resenha: Elza Soares - Deus é Mulher

 Quem é Elza Soares, de que planeta ela veio ? "Do planeta fome". O que é Elza Soares ? Com qual adjetivo podemos classifica-la ? "Cantora do Milênio", "A voz do sofrimento", "Mulher do fim do mundo", "A mulher da voz rouca","Pantera do Renascimento", "Deus". Independente da alcunha recebida, é inegável considerar a figura de Elza como uma das mais prolíferas no cenário de toda a MPB, e também, como o epítome do sofrimento.

Elza têm uma história de vida conturbada, nascida na favela, tendo de casar aos doze anos sofrendo de violência doméstica, engravidando aos 14, ficando viúva aos 21, tendo de lidar com um filho recém-nascido e com o alto custo dos remédios necessários para a doença do bebê, Elza decide então trabalhar com algo com que ela sempre sonhou, com a música. Seu sofrimento não acabou ai, Elza acaba perdendo dois filhos ao logo da ida e tem de lidar com o sequestro de outa. Por volta dos 20 anos conhece o jogador de futebol Garrincha, com quem inicia um relacionamento, o qual foi amplamente criticado, pois ela era uma cantora iniciante, se envolvendo com um astro já consolidado. Além de suportar as garras férreas da mídia, tinha que lidar também com as crises de alcoolismo de Garrincha e a violência doméstica causada por parte dele; o divorcio ocorreu em 1983, e Elza seguiu com sua carreira.

Com 32 álbuns de estúdio solo, Elza lança em 2015, Mulher do Fim do Mundo, trabalho altamente elogiado, que finalmente reconhece Elza como um gigante da música brasileira. Sem necessidade de provar mais nada, eis que no dia  18/05/2018, com 87 anos, lança o sucessor de "Mulher do Fim do Mundo", chamado "Deus é Mulher" cujo álbum você pode conferir agora.

O álbum começa com a potente "O que se fala", nela, Elza com sua voz rouca denuncia a opressão. -Minha voz uso para dizer o que se cala-. O arranjo combina perfeitamente com a interpretação de Elza, uma abertura alegre e clara, que contrapõe seu último álbum. Enquanto "Mulher do Fim do Mundo" possuía um aspecto denso e obscuro, "Deus é Mulher" é leve.

Após a introdução temos "Exu nas Escolas", logo nos primeiros segundos já é perceptível a participação do eufórico Kiko Dinucci nos arranjos da faixa. A faixa trás a participação do artista Edgar ( não, não sou eu kkk), o qual colabora com Kiko na composição. A música fala sobre intolerância religiosa, representatividade da cultura africana e da polêmica do desvio de merenda nas escolas públicas. Uma canção altamente política.

"Banho" terceira faixa do álbum, trás a composição da sempre descolada Tulipa Ruiz. Com um arranjo moderno e voz de fundo composta apenas por mulheres da percussão do grupo afro feminino Ilú Obá de Min, a faixa fala sobre superação e empoderamento usando a água e fenômenos a ela relacionada como metáfora. "Eu vou pingar até em quem cuspiu viu".

Após a animada Banho, encontra-se o erótico frevo "Eu quero comer você". Contrapondo seu último álbum, o qual possuía a faixa "Pra Fuder", também na posição número quatro. A faixa mantém o mesmo ritmo frequente das faixas anteriores, com Elza altamente empolgada ao cantar. Após a animação do frevo de "Eu Quero Comer Você", têm-se a melancólica "Língua Solta", com uma atmosfera sonora um tanto mais obscura para a estética que o projeto segue, e com uma letra poética, que mais uma vez, é acompanhada pela interpretação rasgada de Elza, que quer mesmo é incomodar.

Seguindo o incomodo da quinta faixa, a antítese de Elza se estende em "Hienas na Tv", dizendo sim para quem quer não, e dizendo não para quem quer sim. A letra retrata sobre o conteúdo midiático duvidoso exibido na televisão, sendo comparado com a hiena, animal que devora tudo o que lhe é possível, a faixa termina com uma risada sombria de Elza imitando uma hiena.

Em "Clareza" temos uma faixa punk alternativo, que encaixa-se à voz de Elza. A faixa me lembrou-me "Na Pele", música da Pitty à qual Elza participa. Após o arranjo alternativo de "Clareza" têm-se o pop de "Um olho aberto", onde a verdade é garimpada até sobrar nada. Uma letra mais eco consciente, falando sobre natureza.

"Minha fé quem faz sou eu, não preciso que ninguém me guie,não preciso que ninguém me diga o que posso, o que não. Minha crença eu te conto de cor, não preciso que ninguém me ensine, que o amor, é o deus que não cabe na religião". Esses versos encontram-se em "Credo", uma das faixas mais potentes do álbum. Elza fala sobre o fim da doutrinação e sobre escolhas próprias.

Falando de escolhas próprias, "Dentro de Cada Um" fala sobre a mulher que não quer mais silêncio, pretexto e opressão. Em tempo de "Times Up" e em uma época em que artistas jovens como Clarice Falcão, Pitty, Mallu Magalhães, Karol Conká, dentre outras, cantam por liberdade feminina e expressão, elas têm o reforço feroz e poderoso de Elza Soares, como pode ser visto na música. "A mulher de dentro da jaula perdeu seu carrasco, e vai sair de dentro de cada um".

Chegamos ao encerramento sagrado do álbum. "Deus Há de Ser", cuja letra definiu o nome e contexto do álbum. Deus há de ser mulher, por sofrer como as mulheres sofrem, por suportar o que as mulheres suportam, e por amar como as mulheres amam. Uma faixa onde nada se tira e nada se acrescenta, ela é perfeita do jeito que é.

Elza Soares necessita de alguma apresentação ? Não. Elza Soares precisava lançar esse álbum ? Definitivamente não ! Prestes a completar 88 anos Elza poderia estar em repouso, aproveitando resto de sua vida da maneira mais cômoda e possível que sua saúde possibilita. Mas não, a mulher do fim do mundo deseja ainda usar sua voz; e com ela levantar bandeira, dar a cara a tapa, berrar por seus direitos e cantar sobre sua realidade; e devemos ser amplamente gratos por isso.

Se "Deus é Mulher", Elza é samba, pop, punk, frevo e rock. Elza é resistência, e podemos ver isso em mais um excelente trabalho. Nele temos um conjunto de letras com conteúdos amplos e excelentes produções, que possibilitam um lendário legado para a Cantora do Milênio eternizar.

NOTA- 10/10 

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